quarta-feira, novembro 16, 2005

Emannuel Rolland - O homem que planta hortas, jardins e florestas

Por Jacinto Rodrigues - Professor Catedrático da Universidade do Porto

Gian Giono no livro “O homem que plantava árvores” publicado pela 1ª vez em 1954, conta-nos a história de um homem simples, o pastor Elzeard Bouffier, que no sudeste da França, numa comarca provençal, decide seleccionar sementes de carvalhos que apanha durante as suas caminhadas com o rebanho, nas serranias quase nuas daquelas paragens.
Então, pacientemente, com a ajuda dum bastão pontiagudo, o velho homem, à medida que vai caminhando sobre as ondas telúricas da montanha, vai perfurando o solo com a sua bengala –bastão. Introduz em casa orifício uma bolota. E com o tacão do sapato tapa o buraco...
Durante muitos outonos e até primaveras, fez este gesto simples e mágico... Depois, os anos passaram e ao fim de algum tempo, aquelas montanhas nuas foram-se cobrindo de pequenas árvores que mais tarde se transformaram em carvalhos frondosos.
Esta história tem a ver com Emmanuel Rolland. Fomos vê-lo na sua pequena aldeia – La Chapelle de l’If – no norte da Bretanha e a alguns quilómetros da pequena cidade de Dinan.
Paramos a auto-caravana em frente dum antigo casarão rural.
Era a sede da Associação “Pequenos Jardins de Alunos” (“Petits Jardins des Écoliers” – http://gxardeneto.chez.tiscali.fr ).
Logo ali, na berma da estrada municipal, fica a casa de Emmanuel. Recebeu-nos fraternalmente. Está reformado mas a sua actividade continua transbordante. Logo que chegamos, à tardinha, foi-nos mostrar o “arboretum”, um ecosistema evolutivo de plantas, na pequena vila de Plouet-sur-Rance. Fomos ainda ver o “talude pedagógico” na Escola de Trevon. É uma espécie de canteiro que serve de estudo e experiência de botânica aplicada.
Durante o percurso, Emmanuel foi-nos contando, em traços largos, alguns momentos essenciais da sua biografia. Nasceu naquela aldeia, Chapelle de L’If, a 10km de Dinan, pequena cidade histórica da Bretanha, rodeado por aquele mundo rural fantástico, sendo ele próprio originário de famílias camponesas de longa data.
Tornou-se professor primário, sendo mais tarde docente de manualidades e tecnologias.
Fez, em seguida, uma formação em biologia que o tornou especialista em agro-ecologia.
Toda a sua vida foi assim dedicada ao ensino de jovens e adultos, realizando experiências concretas na agricultura e inovado metodologias e técnicas de trabalho. Em 1993 ganhou um prémio por ter inventado um utensílio manual para trabalhar a terra com facilidade e eficácia.
Cooperando com outro professor, Gaël Vires, desenvolveu uma experiência exemplar a que chamou o “talude pedagógico”. Foi sobre esse talude pedagógico que, na manhã seguinte Emmanuell Rolland começou a primeira explicação prática. Levou-me a um local onde, sobre um montículo de terra, estavam plantadas variadíssimas espécies botânicas. Aquela experiência era uma das muitas realizações que começara anos antes na escola de Trevont.
Agora ali, diante daquele pequeno aterro rico em húmus, com uma altura de cerca de 50 cm, formava-se um pequeno muro cujo comprimento pode variar e tornar-se mesmo uma cerca dum qualquer terreno.
Aquele montículo teria uns 10m, tornando-se uma espécie de vitrine para mostrar as múltiplas variedades botânicas e a sua organização ecosistémica.
Os alunos podiam ver, face a este mostruário vivo, o crescimento de múltiplas plantas estudando processos diferenciados de reprodução e as relações simbióticas entre espécies.Nesta complexidade ecosistémica pode-se assim estudar, ao vivo, a botânica. Pode-se cultivar e observar a metamorfose das plantas, a inter-relação que se estabelece com a fauna, nomeadamente múltiplos insectos e pássaros que aí se vêm anichar e que se manifestam como bioindicadores do terreno.
Plantas e animais, particularmente insectos, lagartos e caracóis e plantas muitas vezes consideradas inúteis e/ou nocivas, expressam a qualidade do terreno tornando-se assim importantes indicadores da acidez, alcalinidade do solo, qualidade do húmus, higrometria, etc.
Emmanuell explica que o talúde pedagógico recria o ambiente da floresta que é, finalmente, a mãe de todo o princípio da agricultura por ser um ecosistema o mais completo possível, favorecendo o crescimento de plantas, permitindo a criação de um abrigo contra os ventos, um muro verde de beleza e utilidade alimentar pois muitos dos pequenos arbustos que fomos observando eram comestíveis (groselhas, mirtilios, framboesas, etc.).
Esta actividade agro-ecológica torna-se assim processo pedagógico multifuncional pois, promovendo a sensibilidade estética estabelece uma relação do homem com a natureza, permite o desenvolvimento dum pensamento ecosistémico aberto e realiza, simultaneamente, uma base de sustentabilidade alimentar para homens e animais.
No vale da ribeira de Romanzon, onde correm águas residuais poluídas pela actividade agro-industrial, Emmanuell plantou árvores que previamente semeara em pequenas garrafas de plástico com a ajuda de todos os participantes ligados à Associação de Languenin.
Semear árvores, em vez de plantar, é toda uma filosofia que Emmanuell Rolland desenvolve ha já alguns anos. Recolhe sementes de vários tipos: bolotas, carvalhos, abrunhos, ameixas, pêssegos, nêsperas, etc., introduz essas sementes numa vasilha com furos nas paredes laterais e enterra-a na terra, excepto o bocal que fica fechado mas fora do solo para se abrir ou fechar quando se armazenam as sementes.
A humidade do solo à sombra duma nogueira ou doutra árvore frondosa, mantém a frescura e humidade ideais. Aí se fazem as reservas essenciais das sementes que começam mesmo a germinar, antes de serem semeadas na terra. Na altura própria, retiram-se para as garrafas de plástico onde, graças a um sistema especial, se cria uma vasilha propícia a fazer germinar a semente.
Surge aqui toda uma ecotécnica que reutiliza materiais (garrafas de plástico)e que simultaneamente propicía a formação de tubos de ensaio (cada garrafa é um tubo de ensaio) facilitando o estudo da planta e melhorando as suas condições de crescimento. Emmanuell Rolland exemplificou-me a técnica demonstrativa da garrafa plástica.
Tudo isto vem nos dois pequenos livros que escreveu.
Naquele campo duma aldeia perdida na Bretanha, Emmanuell Rolland iniciou essas simples actividades agro-ecológicas.
Durante anos alargou a sua sabedoria às ervas aromáticas e medicinais. A vivência rural ancestral com que lidou desde a sua infância fortificou-se com o saber adquirido e no conhecimento de outros autores como Fukuoka, Pfeiffer, Pierre Rabhi e Claude Aubert. A acção exemplar deste homem notável pode ser um estímulo para nós próprios.
Quando cheguei a Portugal, depois desta viagem, pareceu-me ter feito uma experiência iniciática pré-monitória. O País ardia, as florestas, ou seja, as monoculturas industriais de eucaliptos e pinheiros serviam de pasto aos enormes incêndios.
Pela estrada, vindo da Galiza, entrava na visão dantesca destes fogos do alto minho. Revelava-se-me, mais uma vez, os erros estruturais da organização florestal e do território.
Mostrava-se assim a destruição da vida rural, que temos vindo a assistir neste país. Recordei o tempo longínquo em que, com alguns amigos das ainda insípidas associações ambientais, nos juntávamos na luta contra essa destruição. Um dia, chegamos a Valpaços porque o sino tocara a rebate nas serranias transmontanas. Despontavam eucaliptos onde tinham arrancado oliveiras. Aqueles eucaliptos tomavam o lugar onde as pacíficas oliveiras viviam há mais de cem anos. O povo das aldeias assistia aterrado a essas mobilizações do terreno, organizadas pelas multinacionais que, durante o cavaquismo iam transformando a agricultura tradicional em floresta industrial para papel.
Foi nessa tarde de verão que, por detrás duma bouça, surgiu a cavalo a guarda republicana para proteger um qualquer grupo económico. E, quando pacífica e ordeiramente quisemos atravessar aquele campo que mais parecia um cemitério plantado de baionetas, um guarda, montado no seu cavalo assapou-me com o cacetete na cabeça.
Depois destes incêndios todos em Portugal, espero que o exemplo de Emmanuell Rolland possa tornar-se numa semente que chegue até nós. E homens notáveis, como este, em Portugal, possam fazer frutificar hortas, jardins e florestas sobre este solo feito cinzas.

Reflexão crítica do modelo de crescimento económico eurocêntrico e propostas para um desenvolvimento ecologicamente sustentado.

Comunicação apresentada pelo Professor Doutor Jacinto Rodrigues (professor catedrático da Universidade do Porto) no Congresso da Lusofonia em África, organizado pelo CODESRIA (Council for the Development of Social Science Research in Africa). A ler aqui, em formato PDF.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Notas para uma estratégia de ecopolis

Por Jacinto Rodrigues
Professor catedrático da Universidade do Porto


1. METODOLOGIA
A primeira reflexão metodológica é a necessidade de pensar em termos interdisciplinares e transdisciplinares nas intervenções urbanas. A abordagem deve ser integrada. Os vários elementos: a componente das energias, da produção, da circulação, dos consumos e da reciclagem, interagem uns nos outros. Assim, as questões naturais, técnicas e sociais são sistémicas e só podem ser abordadas segundo o pensamento da complexidade.
Essa abordagem deve ser mais profiláctica do que terapêutica. A cidade deve ser entendida como um eco-sistema. Tal perspectiva exige sair da visão “moderna” da cidade mega-máquina e procurar enquadrar a urbe como a expressão eco-sistémica da ligação da sociedade como componente da Biosfera. Este é o sentido lato com que se deve entender a paisagem antrópica.
A cidade como mega-máquina é dissipativa, consumista e contaminante. Tem como matriz o “Shoping Center”.
A eco-polis, cidade como eco-sistema regenerativo, funciona num processo integrado entre civilização, eco-técnica e biosfera.

2. CONCEPÇÃO DA PAISAGEM
Assim, a estrutura construída, o processo de urbanização, deve enquadrar-se na paisagem mais global e articular-se na cidade-região/cidade-natureza.
Como corolário deste ponto de vista procura-se então, em vez do uso de energias fósseis que levam ao esgotamento dos recursos naturais, criar uma produção de energias renováveis e eliminar uma produção com materiais poluentes e energias não limpas, evitando os resíduos contaminantes e tóxicos. Os lixos deveriam ser recicláveis, permitindo assim a substituição do metabolismo linear, próprio das máquinas, em metabolismo circular ou regenerativo dos seres vivos. Esta é toda a diferença existente entre um entendimento da cidade como máquina ou da cidade como “ecosistema”.

3. MULTIFUNCIONALIDADE
A monofuncionalidade, ou seja, a separação das actividades urbanas, característica dos zonamentos da cidade-máquina “moderna”,deve dar lugar a uma interacção onde os mesmos elementos podem constituir respostas multifuncionais.
Isto é particularmente importante no que diz respeito à relação entre paisagem natural e edificação. As árvores e os arbustos, a reorganização do planeamento vegetal em geral, e também a reorganização hidrológica, constituem factores não apenas susceptíveis de embelezamento estético mas de bioclimatização e de biodepuração.

4. BIO-CLIMATIZAÇÃO E BIO-DEPURAÇÃO
O verde urbano, através de corredores verdes, jardins e bosques urbanos, deve ter uma função ecológica decisiva para a bioclimatização e biodepuração.
Muito do lixo orgânico, resultante dos consumos urbanos, pode ser reciclado como fertilizante para hortas e bosques. Recorde-se o exemplo de Curitiba em que os fertilizantes orgânicos entregues pelos cidadãos, permitem a troca com produtos agrícolas criados nas hortas municipais.
Também a renaturalização dos rios não é apenas uma questão de estética.
Hoje conhecem-se bem os fenómenos da fito-depuração dos sistemas de lagunagem, da meandrização e das pequenas cascatas como factores de melhoria na qualidade da água.

5. ENERGIAS RENOVÁVEIS
As energias renováveis devem ser tratadas como uma questão central do ecodesenvolvimento. Devem ser utilizadas duma forma integrada e essencialmente numa escala regional. Por exemplo: mini-centrais que articulem várias energias complementares (solar/ eólica/ hídrica/ biogás, etc.) podem responder muito melhor do que estruturas gigantes monoenergéticas. A escala construtiva comunitária oferece também vantagens sobre o uso de protótipos energéticos à escala familiar. Todas estas estruturas devem inserir-se numa malha policêntrica do território, capaz de o cobrir, energeticamente, com o máximo de descentralidade e complementaridade.

6. BIO-CONSTRUÇÃO
A edificação deve pautar-se por uma legislação com preocupações ecológicas claras. O uso de materiais não poluentes, as preocupações pelos sistemas solares passivos, a articulação com a bioclimatização gerada pela eco-paisagem, devem ser um factor chave. A própria disposição espacial pode valorar o aproveitamento energético.
O exemplo francês pode ser implementado como processo pedagógico. O programa denominado construção de alta qualidade ambiental (H.Q.C.) estabelece concursos especiais na base de soluções ecológicas através da escolha de materiais não poluentes e soluções energéticas alternativas.
As edificações públicas, em particular as escolas e centros de formação cultural devem tornar-se experiências exemplares. Quando funcionam segundo o preceito da eco-construção, favorecem comportamentos e atitudes que são as melhores soluções para uma verdadeira educação ambiental.
A construção bioclimática exige novas formas, novos materiais, novos processos de implantação topológica. Estas novas morfologias complexas são dispositivos catalizadores duma outra civilização.

7. AGRICULTURA E INDÚSTRIA ECOLÓGICA
Em articulação com a actividade construtiva e também em função de outras actividades como a industrial, deveria proceder-se a uma eco-agricultura que complementarizasse a abertura de novos postos de trabalho às exigências simultâneas da agricultura e indústria numa base ecológica.
Um exemplo que me parece interessante estudar é o do incentivo da cultura do cânhamo. Queremos aqui referir, evidentemente, o cânhamo industrial, isto é, a planta Cannabis Sativa L. cujo teor de T.H.C. é inferior a 0,3, não sendo por isso susceptível de ser utilizada como droga. Refira-se ainda que o cultivo desta planta industrial é subvencionado pela União Europeia.
A cultura do cânhamo foi praticada no Norte, Centro e Sul de Portugal, ao longo de várias épocas, nomeadamente no fabrico das velas e do cordame para os barcos à vela.
Tem a seguinte particularidade: é uma produção agrícola de fácil manutenção, beneficia os solos e permite, para além da tecelagem, o fabrico de papel e outros materiais. Acontece ainda que, através de processos recentes, esta planta está a ser utilizada na bioconstrução.
Também a transformação tecnológica do bambú chinês “miscanthus” poderá vir a possibilitar uma articulação entre a actividade agrícola e a bioconstrução.
São também possíveis outro tipo de actividades agrícolas (permacultura, agricultura biodinâmica) capazes de promover agro-pecuárias ecológicas.

8. TRANSPORTES ALTERNATIVOS
Os transportes públicos não poluentes deveriam constituir uma alternativa à invasão do trânsito urbano.
Com os corredores verdes, para além da função depuradora, criam-se circuitos pedonais e ciclovias que poderão permitir conexões entre várias zonas.
As passarelas constituem atravessamentos fáceis, permitindo logradouros por onde se espraiam paisagens urbanas.
Os centros da cidade, em particular os centros históricos, são avessos ao uso de automóveis.
No estado actual, os veículos são poluentes e constituem uma oposição ao uso de hortas urbanas e espaços públicos de lazer e cultura.

9. PARTICIPAÇÃO CONSCIENTE DAS POPULAÇÕES
A prática do urbanismo numa perspectiva ecológica deverá ter em conta a mobilização das populações na detecção dos problemas e sua resolução.
Assim, o eco-urbanismo é, antes de tudo, desígnio estratégico sujeito às múltiplas interacções surgidas ao longo dum percurso que deve ser entendido como processo permanente embora com faseamentos nos objectivos mas que serão sempre sujeitos a constantes avaliações e retroacções.
A “investigação-acção” e o “trabalho de projecto” são as práticas sociais que melhor se coadunam com esta filosofia. A mobilização consciente da população é decisiva. Volto ainda à experiência de Curitiba:
Nalguns festivais culturais, encontros de cinema, teatro ou música promovidos pela municipalidade dessa cidade brasileira, a entrada dos espectáculos é paga com garrafas usadas ou papel para reciclar. Este tipo de mobilização pela positiva é uma forma educativa que sendo alheia a qualquer processo administrativo-repressivo, liga as aspirações às necessidades, promove solidariedade e cooperação num clima social, lúdico e festivo tão necessário à participação popular nos objectivos de interesse público.
Através desse processo, a população vai tomando consciência da problemática ecológica e o planeador deixa de ter a arrogância dum tecnocrata autoconvencido dum qualquer “modelo” estático e “ad eternum...”.

Assim, o eco-urbanismo é um caminho que se faz caminhando, parafraseando o poeta Machado.
No entanto, qualquer intervenção deve ser reflectida e inserida numa óptica projectiva, futurante, pois os dispositivos topológicos são, por natureza, resistentes à mudança. E quando se constroem dispositivos errados, estes funcionam como travão às mudanças, podendo mesmo transformar-se em mecanismos de reprodução de hábitos opostos à necessária e permanente metamorfose social.

Jacinto Rodrigues
(Professor catedrático da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto)
Artigo publicado na revista «Arquitectura e Vida» de Março de 2004